Cannabis medicinal. O passado, o presente e o futuro.

Artigo escrito por:

Prof. Dr. Flávio Henrique de Rezende Costa

Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Health Meds
Mestre e Doutor em Neurologia pela UFRJ
Professor do Departamento de Clínica Médica – Faculdade de Medicina da UFRJ

flavio.rezende@hmeds.com.br

Introdução

A cannabis vem sendo utilizada há séculos como terapia médica, em diversas culturas. A planta foi introduzida em larga escala na medicina ocidental século no XIX, por médicos britânicos. Os ingleses acumularam experiência durante os trabalhos nas colônias, indicando o uso como estimulante do apetite, analgésico, relaxante muscular, anticonvulsivante e hipnótico (1,2).
As cepas de cannabis são derivadas de duas espécies: a sativa e a indica. As cepas sativa possuem maior concentração de THC (Δ9 Tetrahidrocanabinol) , portanto tem o potencial de produzir euforia. Por outro lado, as cepas indica apresentam maior teor de canabidiol (CBD), que possui propriedades antieméticas, analgésicas e sedativas- e não produz efeitos psicotrópicos (3,4).
As propriedades polifarmacêuticas – inerentes aos produtos botânicos derivados da cannabis – oferecem vantagens distintas sobre o clássico modelo farmacêutico de alvo único. Trata-se de área do conhecimento em contínua evolução. Novas indicações vem sendo estudadas – com metodologia cada vez mais adequada- e as evidências científicas vem ganhando corpo nos últimos anos (1,4,5).

O Sistema Endocanabinoide

A planta cannabis possui mais de 480 substâncias químicas. Cerca de 150 compostos possuem apenas carbono, hidrogênio e oxigênio. São denominados fitocanabinoides. Dentre os fitocanabinoides mais conhecidos e estudados estão o THC (9 Tetrahidrocanabinol), o CBD (Canabidiol) e o CBG (canabigerol) (1,6).

Nas últimas três décadas os receptores de canabinoides (RCs) e os endocanabinoides (EC) – moléculas endógenas capazes de ativar os receptores canabinoides – foram descobertos em diferentes tecidos, incluindo os nervos periféricos, o sistema nervoso central e sistema imunológico. Os ECs estão implicados em uma gama de funções fisiológicas, incluindo a cognição, o humor, o controle motor, o comportamento alimentar e a dor (1,7).

Existem dois tipos de RCs. O receptor CB1 é acoplado à proteína G. É expresso abundantemente no cérebro e tem alta afinidade pelo THC. O receptor CB2 também é acoplado a proteína G, porém expresso de forma mais abundante no sistema imunológico. Essas descobertas levaram à identificação dos ligantes endógenos. Os lipídios anandamida (etanolamida do ácido araquidônico) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG) demonstraram alta afinidade pelos receptores CB1 e CB2 no cérebro e no intestino, sendo considerados os principais EC. Posteriormente outras enzimas envolvidas na biosíntese e na inativação dos EC foram descritas. Vide tabela 1. O conceito expandido atual é o de endocanabidoidoma, ou seja, de uma vasta rede de mediadores, vias e de processos metabólicos que se sobrepõem. Esse sistema complexo apresenta um desafio para o desenvolvimento medicamentos seletivos baseados nos ECs, mas também oferece novas oportunidades para a exploração de fitocanabinoides, como o CBD e o CBG (1,3).

SISTEMA ENDOCANABINOIDE (EC) COMPONENTE PAPEL
ReceptoresCB1Receptor do THC e endocanabonoide
CB2Receptor do THC e endocanabonoide
Enzimas(Fatty acid amine hydrolase- FAAH)Hidrólise da anandamida
N- acylphosphatidylethanolamine-specific phospholipase
d- like hydrolase (NAPE- PLD)
Biosíntese da anandamida
Monoacylglycerol lipase (MAGL) Hidrólise da 2- AG
Diacylglycerol lipase α e β (DAGLα e DAGLβ)Biosíntese da 2-AG
Tabela 1. Principais enzimas e receptores envolvidos no sistema endocanabinoide. Adaptado de Cristino e colaboradores, 2020.

Diversos estudos apontam os EC como moléculas pleiotrópicas envolvidas na sinalização e no reestabelecimento da homeostase após insultos patológicos. Estas descobertas abriram as portas para o desenvolvimento científico de diversas terapias, especialmente na neurologia (4,8).


Nos EUA os canabinoides sintéticos nabilone, dronabinol foram aprovados pelo FDA (Food and Drug Administration) para o tratamento da anorexia e da náusea relacionadas à quimioterapia. O sativex (spray com THC 2.7mg + canabidiol 2.5mg/dose) foi aprovado na Europa para a o tratamento da dor e da espasticidade associadas a esclerose múltipla (9).

Recentemente, o medicamento Epidiolex (extrato natural de CBD altamente concentrado) recebeu o status de droga órfã pelo FDA, para o tratamento da Síndrome de Dravet e Lenox Gastaut (10). As principais condições neurológicas, para as quais foram testados tratamentos à base de cannabis, estão sumarizadas na tabela 2, com os respectivos níveis de evidência (9).

CONDIÇÕES MÉDICAS FORMULAÇÃO NÍVEL DE EVIDÊNCIA TIPO DE EVIDÊNCIA
*Dor e espasticidade na EMNabiximols (THC +CBD) ConclusivaECR fase III
Aprovação Regulatória
*Epilepsia (Dravet e Lenox Gastaut)CBD ConclusivaECR fase III
Aprovação Regulatória
Dor crônicaTHC, Nabiximols (THC + CBD)ElevadoECR fase II
Esquizofrenia (sintomas positivos e negativos) CBD ElevadoECR fase II
Distúrbios do sono secundários a doença neurológicaTHC, Nabilone, nabiximols (THC + CBD)ModeradoECR fase II – III
GlaucomaTHC, cannabisModeradoECR fase II
Sintomas urinários da EM Nabiximols (THC + CBD)ModeradoECR fase II
Síndrome de TouretteTHC, cannabisModeradoECR fase II
Estudos observacionais
Demência com agitaçãoTHC, cannabisLimitadoEstudos observacionais
Sintomas motores e não motores na doença de ParkinsonTHC, CBD e cannabisLimitadoEstudos observacionais
Síndrome de estresse pós-traumáticoCannabisLimitadoEstudos observacionais
AnsiedadeCBDLimitadoECR fase II
Estudos observacionais
Tabela 2. Nível de evidência dos estudos relacionados à cannabis medicinal. Adaptado de Russo, 2018.

  • *Indicações aprovadas pelo FDA (Food and Drug Administration). .
  • EM= Esclerose múltipla. THC= (Δ9 Tetrahidrocanabinol). CBD= Canabidiol. ECR= Ensaio Clínico Randomizado.

Farmacologia clínica

O CBD e o THC são moléculas lipofílicas, praticamente insolúveis em água. Por esta razão os estudos clínicos com CBD purificado utilizaram solução diluída em óleo de gergelim. Os nebiximols – na apresentação em spray – usam como o excipiente o etanol. Devido a sua alta lipofilicidade e o metabolismo hepático de primeira passagem bastante elevado, os estudos de farmacocinética indicam baixa biodisponibilidade (9-19%) dessas moléculas (11). Por outro lado existe um aumento substancial da biodisponibilidade oral do CBD e do THC quando tomados com alimentos, achado que pode ter implicações na prática clínica (12).

Segurança a tolerabilidade

Grande parte do conhecimento sobre a segurança e tolerabilidade dos canabinoides vem dos estudos de pacientes adultos com esclerose múltipla, dor e tremor. Os dados disponíveis são principalmente da associação THC/CBD (13). Os efeitos adversos mais comuns são náuseas, fraqueza, alterações do comportamento, do humor, fadiga, tonteira e intoxicação. Em uma análise compilada de 1619 pacientes com esclerose múltipla, dor neuropática e desordens do movimento, 112 (7%) suspenderam o tratamento devido a efeitos adversos – em comparação a 25 (2%) de 1118 pacientes do grupo placebo (14).
Em dois pequenos ensaios clínicos randomizados – que utilizaram CBD altamente purificado em 88 adultos (1.000 mg/dia) e em 36 adultos (600mg/dia) com diagnóstico de esquizofrenia – não foi observada piora dos sintomas psiquiátricos (agitação ou psicose). Esses achados reforçam as evidências de que o CBD não produz efeitos psicoativos, mesmo nos pacientes com alta predisposição a efeitos deletérios de medicações (13,15).

Ensaios clínicos randomizados e estudos abertos avaliaram a segurança e a tolerabilidade do CBD na população pediátrica e em adultos jovens, com formas graves de epilepsias. Os efeitos adversos foram elevados nos grupos tratamento e no placebo, provavelmente relacionados a alta carga medicamentosa desta população. Os efeitos adversos mais comuns foram sonolência e diarreia – e outros efeitos gastrointestinais, provavelmente associados ao óleo de gergelim, utilizado como solvente nas soluções com CBD purificado. Efeitos adversos atribuídos ao CBD incluíram a exacerbação do quadro convulsivo, aumento de transaminases, trombocitopenia, diarreia grave ou perda do apetite (16,17).

No estudo da síndrome de Dravet, 57 (93%) dos 61 pacientes tratados com CBD e 44 (75%) dos 59 pacientes tratados com placebo relataram efeitos adversos. Embora a maioria dos efeitos adversos relatados tenham sido leves a moderados, levaram à retirada em 8 (13%) dos 61 pacientes tratados com CBD e em 1 (2%) dos 59 pacientes tratados com placebo (10).

Conclusões e perspectivas

Os canabinoides devem ser estudados como quaisquer outras drogas, para determinar a sua eficácia e, quando houver evidência disponível, devem ser prescritos como as demais drogas (14).

Existem diversas evidências clínicas emergentes de que alguns tipos de fitocanabinoides (THC e CBD) são relativamente seguros e eficazes no tratamento de distúrbios neurológicos, como a epilepsia grave, a dor e a espasticidade associadas a esclerose múltipla.

Há diversos estudos em andamento ou recentemente concluídos. Um estudo fase 2A (ACTRN12616000510448), que utilizou apresentação em gel transdérmico do canabinoide ZYN0002 em pacientes com epilepsia de início focal terminou o recrutamento em 2018 – os resultados ainda não foram publicados.

O ensaio clínico fase 3, que incluiu pacientes com espasmos infantis (Síndrome de West) (NCT03421496), avaliará a eficácia do extrato ultraconcentrado de CBD como terapia adjuvante à vigabatrina. A fase de recrutamento se encerrou em dezembro de 2019.

O estudo da fase 3 (NCT02544763) terminou a fase de recrutamento de 224 pacientes com esclerose tuberosa. O objetivo é investigar a eficácia e a segurança do CBD com terapia adicional (GWP42003-P) na apresentação de 100mg/ml, em pacientes com mau controle das crises convulsivas. Três grupos foram randomizados: 25mg/kg/dia; 50mg/kg/dia ou placebo. Os resultados aguardam publicação.

É importante salientar que a prescrição de canabinoides não é isenta de riscos e que os médicos devem estar atentos para os potenciais efeitos adversos e as interações medicamentosas. Além disso, apesar de serem seguros no curto prazo, são necessários mais estudos para determinar os efeitos de longo prazo, como o desenvolvimento cerebral e teratogenicidade (6).

Finalmente, não é recomendável extrapolar resultados dos ensaios clínicos com preparações padronizadas para outras não padronizadas – como os extratos artesanais e outros produtos não regulamentados, sem concentração definida de THC ou de CBD (6).

Referências

  1. Cristino L, Bisogno T, Di Marzo V. Cannabinoids and the expanded endocannabinoid system in neurological disorders. Nature Reviews Neurology [Internet]. 12 de janeiro de 2020 [citado 4 de fevereiro de 2020];16(1):9–29. Available at: http://www.nature.com/articles/s41582-019-0284-z
  2. Tomida I, Pertwee RG, Azuara-Blanco A. Cannabinoids and glaucoma. The British journal of ophthalmology [Internet]. maio de 2004 [citado 4 de fevereiro de 2020];88(5):708–13. Available at: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15090428
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