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A compaixão que encontra a ciência

Há diversos relatos de doenças intratáveis ou incuráveis que se beneficiam do uso compassivo dos derivados da Cannabis

Por Ana Gabriela Hounie e Flávio Henrique de Rezende Costa

Originalmente publicado em O Globo

 

Quem gosta de futebol sabe que as paixões acometem todos os humanos, há fanáticos por todos os times. Vamos deixá-las de lado, exceto a que temos pela saúde dos pacientes refratários aos tratamentos tradicionais, e passemos a uma visão fria e científica dos fatos. A taxa de refratariedade em neuropsiquiatria é altíssima: 30% dos deprimidos, 15% dos esquizofrênicos, 90 % dos que sofrem de demência, 40% dos obsessivos e 30% dos epilépticos, apenas para exemplificar. Diversos trabalhos demonstram que esses pacientes respondem aos canabinoides. Assombrosamente, os derivados da Cannabis também podem combater o abuso de drogas, como os opioides (que causaram 100 mil óbitos nos EUA em 2021), os benzodiazepínicos, os indutores de sono (dependência de droga Z, uma epidemia atual) e o álcool. Por que negar o direito ao uso compassivo desses produtos a essas famílias que tanto sofrem?

 

Uso compassivo é o uso por compaixão, quando se esgotam as possibilidades terapêuticas. E, ao colocar na balança de um lado o sofrimento atual do paciente, do outro a possibilidade de alívio com um mínimo de possibilidade de efeitos adversos, a decisão é pelo alívio e pela melhora da qualidade de vida.

 

Diversos trabalhos epidemiológicos demonstraram a segurança do uso medicinal dos derivados da Cannabis por pelo menos cinco anos de uso. Esse período é mais que suficiente para contemplar a prescrição para o uso compassivo. Análise de um grupo de pacientes australianos, cerca de 4 mil indivíduos, concluiu que essa terapia é segura e bem tolerada.

 

Sabe-se que a prescrição de algumas classes terapêuticas tradicionais está associada a aumento da mortalidade entre idosos. O exemplo mais claro é o uso de neurolépticos para tratamento de agitação nos pacientes com demência, associado ao aumento de três a cinco vezes do risco de morte por quedas, infarto do miocárdio ou acidente vascular cerebral. Como contraponto, não existe um estudo sequer, ou mesmo relato de caso, de overdose de Cannabis ou quaisquer evidências de aumento de mortalidade.

Um grupo do King’s College publicou no periódico PLOS Medicine uma meta-análise que avaliou os resultados de estudos clínicos com mais de 3.600 pacientes. Apesar da possibilidade de efeitos adversos, não houve evidência de aumento de mortalidade, seja com canabinoides naturais ou sintéticos — como o dronabinol, aprovado em 1985 pela FDA (agência de saúde dos Estados Unidos) para o tratamento das náuseas, vômitos e caquexia associados ao câncer.

 

A era do conhecimento médico dos derivados da Cannabis está em franca expansão. Há diversos relatos de casos de doenças refratárias, intratáveis ou incuráveis que se beneficiam do uso compassivo: paralisia supranuclear progressiva, demências, TOC, epidermólise bolhosa, psoríase, síndrome de Tourette, várias doenças neurodegenerativas como Parkinson, Huntington, ELA, dores crônicas (fibromialgia, enxaqueca, neuralgias), entre outras. Fechar os olhos para essas indicações emergentes ou, pior, simplesmente negá-las é uma afronta aos mais basilares princípios hipocráticos.

 

Contrariando a afirmação de que não há lugar para a Cannabis na psiquiatria, o Estado de Israel regulou seu uso na síndrome de Tourette, no transtorno de estresse pós-traumático, no autismo e nos sintomas comportamentais das demências. A Associação Americana de Psiquiatria promove um curso sobre o uso medicinal de Cannabis, se não para estimular, pelo menos para reconhecer que ele existe e preparar os médicos para receber esses pacientes, reconhecer sua demanda e encaminhar aos que têm a expertise de acompanhá-los.

 

Para finalizar, cabe aqui um pensamento de Albert Sabin:

 

— O cientista, que também é um ser humano, não deve descansar enquanto o conhecimento que pode reduzir o sofrimento repousa em uma estante.

É justamente aqui que a compaixão encontra a ciência e vice-versa.

 

*Ana Gabriela Hounie, psiquiatra com pós-doutorado pela Faculdade de Medicina da USP, é membro do conselho consultivo da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide e presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia, e Flávio Henrique de Rezende Costa, doutor em neurologia, é professor adjunto de neurologia da Faculdade de Medicina da UFRJ, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia e membro do conselho consultivo da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide

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